quarta-feira, 6 de junho de 2012

II: A Besta de Grimol


                As árvores brancas de Broceliant erguiam-se como fantasmas pálidos sobre as margens da velha estrada imperial. Cresciam afastadas umas das outras, como se evitassem a companhia de suas semelhantes, e seus troncos desbotados eram altos e estreitos de maneira esquálida. A pouca luz matinal que atravessava suas copas, barrada pelas nuvens do outono, reforçava sua languidez. Os fortes ventos convocavam-nas a cantar seu peculiar coro de folhas secas, e elas os respondiam unanimemente, anunciando a tempestade vindoura.

A menina, caída por horas sobre o corpo castigado, chorava copiosamente não muito além do caminho pavimentado. Os cabelos castanhos estavam empapados por um fio escarlate que escorrera da testa até enrijecer. Os punhos tinham sido amarrados a uma árvore firme e o vestido feito em farrapos. As marcas na carne estampavam sua angústia. Pelas formas pueris, não devia ter mais do que doze ou treze de invernos. Nesta idade, poderia ser considerada adulta nas montanhas, mas aqui ainda era uma menina. Pendurado nos galhos da árvore à sua frente, balançando ao sabor do vento, pendia a forma inanimada de um homem simples do campo. Se quaisquer outros viajantes haviam notado suas lamentações após a curva, tinham preferido ignorá-las, talvez temerosos de que as árvores fossem verdadeiramente mal-assombradas.

A exceção fora a guerreira vestida em placas de pé ao seu lado, de cabelos pálidos e olhos selvagens. Prestara-se a lhe cortar as cordas e contar o rastro dos quatro homens que a haviam castigado. Depois, se propôs a aguardar a recuperação da jovem, a espada servindo-lhe de apoio pela ocasião. Até então, o choro dominara a menina pelos longos minutos de sua vigília.

– Levante – quebrou o silêncio de maneira imperativa. A jovem continuou prostrada, as mãos enterradas na terra pontilhada pelo próprio sangue. Tremia, soluçava e respirava freneticamente; o inalar do ar resfriado parecia arder-lhe tanto quanto as dores do corpo. Quando juntou alguma força, conseguiu levar as mãos até joelhos esfolados.

– Levante – a guerreira repetiu inclemente. A menina moveu os lábios partidos para pronunciar qualquer coisa, mas a voz desapareceu em seco. Houve silêncio novamente, e um momento em que ficou tão quieta, que pareceu ter desfalecido na posição que estava. Enfim, suas mãos encontraram os pés do homem pendurado à sua frente. Agarrou o sustento com um aperto determinado, até erguer o corpo e levantar o rosto para encarar sua observadora exigente.

– Eu quero... – fungou uma última vez, antes de engolir por definitivo o pranto. – eu os quero mortos. Todos eles. Você me atenderá? – Ao reencontrar a voz, soou tão profundamente odiosa, que Ashlan teve certeza não se tratar mais de uma menina à sua frente; era senão o próprio espírito da vingança, com sua fúria sedenta, quem lhe exigia resposta.

– Você terá o que deseja – a guerreira meneou a cabeça afirmativamente. Notou também que a jovem já não mais tremia ou ameaçava desfalecer. Era sinal de que o pacto seria verdadeiro. – Mas haverá um dia, quando eu chamar seu nome, que você virá a mim.

– Meu nome é Lys. Eu concordo.

– Então, você tem minha palavra. Eu sou Ashlan. Vamos, já passamos tempo demais neste lugar – deixou a juíza de lado, satisfeita com o seu julgamento, e substituiu-a pela guardiã. Pés descalços se aproximaram dela, em um passo primeiro cambaleante, depois firme e constante. Quando partiram, deixaram detrás de si uma forma inanimada envolta em chamas, enviada para o além à maneira antiga dos Drúan. A jovem Lys lançou um último olhar por sobre o ombro, e como se a visão incendiasse seu interior, seus olhos queimaram em um presságio de coisas por vir.  

Duas horas de caminhada as levou para longe da estrada imperial, depois de avistarem fiapos de fumaça ao fim de um meandro de terra. Chegaram ao vilarejo de Varllän junto com a chuva outonal. Ninguém estava às ruas para recebê-las; a pesada torrente havia afugentado seus habitantes. Uma densa sombra se assomava entre os casebres, uma cobertura escura demais mesmo para o tempo nebuloso, deixando uma notável impressão de que a madrugada havia se atrasado para partir dali. Das construções locais, as ruínas de uma antiga capela era a única que se sobressaia, e ainda que devastada, parecia um excesso em meio às pouco mais de trinta choupanas semiabandonadas.

Era certo que algo estava fora do lugar em Varllän; um observador cauteloso perceberia que as sombras se dobravam em direções inadequadas, ângulos impossíveis para as formas de onde se projetavam. Um mais cauteloso ainda perceberia que estes ângulos se inclinavam todos na direção da pequena capela central. Entretanto, tanto Ashlan quanto sua acompanhante estavam indispostas demais com a caminhada e a chuva para darem atenção às pequenezas dos olhos. Assim, escolheram uma choupana desocupada, se abrigaram e decidiram se ocupar em tramar a morte de quatro homens.


§


Havia dois tipos de soldados no Forte Amonost: os obedientes e os mortos. Trinta homens designados para patrulhar as margens de Broceliant, na parte mais erma do Ducado de Aeorvis, viviam ali. A região, preenchida pelas árvores magras e esbranquiçadas do Bosque Branco tinha por relevo colinas baixas e pedregosas, entrecortadas por córregos estreitos, estes visitados apenas pelos pequenos rebanhos dos pastores locais. Era também preenchida por quatro minúsculas e distantes vilas: Breannän, Varllän, Moinho e Vila Oeste. O próprio forte havia sido erguido na parte mais vigilante das colinas, em torno das sobras de uma antiga torre Andorana; de onde era possível observar seu limite ao extremo norte, os pinheiros altivos de Faêngarth, e sua fronteira oeste, um longo braço de água do Rhien. Principalmente, estas paisagens remotas indicavam que os habitantes dali estavam tão afastados do Castelo Aeorvis, que Grimol era seu único e verdadeiro governante.

A figura do Comandante, quase sempre vigilante do alto de sua torre, se destacava um palmo mais alta que a maioria dos seus homens. A despeito da cabeleira e das costeletas grisalhas, mantinha uma forma muscular notoriamente avantajada. Vestia  as escamas de sua armadura como uma segunda pele, entalhadas em um elaborado relevo com a heráldica de seu Senhor, dois ursos voltados um contra o outro. O símbolo lhe caia bem, pois era um lembrete da razão por que era tão temido: a besta que mantinha em seu calabouço.

Diziam se tratar um urso que ele capturara anos atrás na floresta, mas todos sabiam que era uma criatura das trevas. Na maior parte do tempo, fazia silêncio; outras vezes, urrava freneticamente, e em ocasiões mais raras, os homens juravam ouvi-la rosnar seus nomes. Respondia exclusivamente ao Comandante; apenas ele se aproximava livremente do poço gradeado onde habitava. Os outros que faziam o mesmo iam contra a própria vontade, quando sentenciados ao calabouço de Amonost. Destes sujeitos, jamais se ouvia falar novamente. 

E havia também certas noites, em que a lua se ocultava do céu e a escuridão noturna era mais profunda, em que o Comandante abria as grades para a criatura ser livre. Nenhum dos homens era bravo o bastante para olhar diretamente para besta enquanto passava; sua mera presença produzia um medo palpável e primitivo, um terror indefinido de coisas abissais. Mas eles viam sua sombra, e sabiam que não era um urso. Era quadrúpede, coberta em tufos de pêlos espessos, porém grande demais para ser qualquer animal natural. A cauda longa chicoteava como uma serpente maldosa e a cabeça era encolhida no próprio tronco, como se sem focinho, ou mesmo pescoço. Saia disparada pela noite com um rugido, e voltava antes do amanhecer em quietude, deixando somente um rastro vermelho detrás de si. Os que desafiavam sua autoridade não iam longe sob o julgo de Grimol.

Daveth sabia de tudo isto, por isso preferia ser dos homens que obedeciam, à segunda categoria. Juntara-se a tropa há cerca de um ano, e embora soubesse que brutalidades faziam parte do dever, fora sua mais recente tarefa que abalara seu senso de lealdade. Tinha sido convocado junto a três membros da tropa para dar cabo de um pastor que ocultara impostos para si. O homem recebeu o devido castigo aos que roubavam do Comandante: foi enforcado rapidamente, conforme as leis da terra. Fora a ordem seguinte que agravara a honra de Daveth. Arrastaram a filha do pastor consigo e a degradaram covardemente. Quando tentou resistir, a menina quase teve a cabeça partida por um cabo de espada. Era de idade próxima de sua irmã, Enola, por isto amargara ainda mais a ordem. Ainda assim, fez o que tinha de se feito; porém, agora, ponderava rancorosamente se teria de fazê-lo novamente, se possuiria a disposição para tal, e o tratamento que seria dispensado a Enola caso não a tivesse.

Entrou pelo forte ao entardecer com o gosto da bile ainda misturado à saliva. Sua patrulha estava encerrada pelo dia; passou a malha, a lança e o elmo adiante para o soldado que iria substituí-lo. Os outros homens foram se embriagar como de costume ao fim de seu turno; nenhum parecia particularmente feliz, à exceção talvez de Giscard, que era conhecido por seu temperamento cruel. Desta vez, Daveth preferiu visitar o Ministro da torre.

Cruzou o pátio até a ala nordeste do forte, onde o diminuto templo da Eterna Luz aguardava. Era claramente uma extravagância chamá-lo de templo: tratava-se apenas de uma sala em um canto de Amonost, um pequeno depósito adaptado, suficiente para os serviços religiosos ocasionais dos devotos e, mais frequentemente, dos finados. Resumia-se a castiçais acesos nas paredes, meia dúzia de bancos, um altar de madeira, a cadeira cerimonial do Ministro e uma diminuta prateleira de livros sacros. O clérigo era um homem ainda mais velho que o próprio Comandante, quase senil dada a idade avançada, que preferia a companhia de seus livros à dos homens de armas. Vivia isolado ali; a recompensa dos muitos anos de esforço para ser esquecido pelos indivíduos à sua volta.

Quando Daveth adentrou a sala, encontrou o Ministro entretido com seus livros, como esperado. Sentou-se em um dos bancos e aguardou, até que o velho concluiu sua leitura de olhos apertados, levantou-se com dificuldade e aproximou-se lentamente. – A luz é imaculada, infinita e eterna – abençoou o visitante. – A luz é eterna – respondeu o soldado com a devida reverência.

Os dedos frágeis do Ministro repousaram sobre seu ombro. Daveth abriu os lábios, balbuciou com intenção de falar, mas sentiu o amargor na garganta com mais intensidade do que antes. Sua ira se dilui em um remorso opressor. O Ministro concordou com o olhar, sinalizou-o as bênçãos da Luz e caminhou de volta para sua cadeira; outros antes de Daveth já haviam entrado ali com a mesma expressão desolada. O Ministro sabia que não havia nada que pudesse ser dito; o melhor a se fazer era deixar os homens terem o momento de paz que esperavam encontrar ali. O soldado orou silenciosamente pela remissão de seus pecados: mas sabia que não era merecedor, sabia que era véspera de lua nova, e sabia que deixara uma jovem camponesa para passar o dia amarrada a uma árvore. Decidiu que passaria a noite ali em vigília pela alma dela. Mas concluiu que se algum poder maior lhe desse atenção, seria somente na forma de retribuição. 


§


A lua nova favorecia àqueles que caçavam à noite. Para o lobo e a raposa, a coruja e o morcego, a escuridão profunda era um amiga bem-vinda; servia-lhes para moverem-se invisíveis, formas vagas e imperceptíveis na treva, aptas a encontrar suas presas com mais do que a mera visão. Usavam instinto, prontidão e paciência, virtudes que separavam o caçador bem-sucedido do mal-fadado na natureza. Trocadas por comodidades indolentes pelos homens das cidades, nas montanhas os Drúan integravam estas virtudes inseparavelmente a seu modo de vida. Aprendiam a pisar silenciosos como o puma, a ouvir com a acuidade do lince e a esperar com a quietude da serpente.  

Assim, naquela noite, Ashlan, nascida nas montanhas, foi o puma, a lince e a serpente. Percorreu veloz a distância entre Varllän e Amonost, ora guiada pela tênue luz das estrelas, ora pelo vento que soprava entre as colinas. Deixou sua capa de lobo para a jovem Lys se encobrir do frio; em seu lugar, trouxe um arco e aljava emprestados de um aldeão, uma mochila com meia dúzia de frascos de verniz comprados do marceneiro local e uma sacola de couro sobressalente. Pelas distâncias indicadas, calculou que chegaria a Amonost pela hora ao amanhecer. Enfim, achou um rochedo largo o bastante para cobrir sua silhueta e alto o bastante para que pudesse observar a muralha de três pontas em torno da torre; lá, aguardou o instante certo para cruzar pelos vigias esgotados.

Não demorou muito para que o céu se dividisse entre escuridão e alvorada, quando o vento noturno deu lugar a uma neblina espessa. Neste momento, a selvagem se moveu novamente. Deslocou-se no limite que a maciez da relva encobria suas passadas, pôs-se em um ponto cego da muralha, e escalou com a agilidade de quem se habituara às encostas escarpadas do norte. Saltou sobre a amurada em posição felina, da qual avistou a primeira das sentinelas.

Aproximou-se do homem com passos rápidos, pôs-se detrás dele e acertou-lhe o pescoço com um punho cerrado que o desfaleceu de imediato. Conferiu suas feições: não era nenhum dos agressores que procurava. Havia repassado os traços dos soldados com Lys até impregnar sua memória com quatro retratos distintos e perfeitos; este era só um rapaz imberbe de cabelos desgrenhados. Ashlan amarrou-o com o próprio cinto, amordaçou-o e colocou-o em posição que, visto de longe, pareceria ainda estar fazendo guarda.

Aproveitou as circunstâncias para analisar do alto o interior da fortaleza. Cada muralha podia ser percorrida em cem passos e seu pátio era particularmente vazio. Além da torre principal de topo ruído e encoberto em lodo, havia um estábulo ocupado por meia dúzia de cavalos, uma pequena forja, e um grande poço gradeado entre o vão da torre principal e o muro logo detrás dela. Tochas fracas iluminavam a área em intervalos grandes demais para realmente banirem a escuridão. Pelas marcas do terreno, Ashlan deduziu por quais portas os homens se deslocavam com maior frequência, imaginando a partir delas a localização do dormitório, depósito, arsenal e área de refeições. Estranhou que o portão principal estivesse escancarado, mas a desolação geral denotava que seus habitantes não se preocupavam excessivamente com invasores. Se fosse como esperava, pelo menos metade da guarda estaria fora em patrulha rotineiramente.

Dado o vazio imperante, a Drúan avançou à guarita seguinte. Avistou o vigia perdido em algum devaneio direcionado ao horizonte; observou também que este tinha a mecha grisalha peculiar que lhe fora descrita. Em um instante, arco e flecha zuniram, e a mecha desapareceu embotada pelo sangue vazado de sua cabeça. Assim se foi Giscard, amaldiçoado pelo dia em que assumiu sentinela após a patrulha, seu temperamento cruel apaziguado por seus miolos espalhados.

O terceiro vigia estava adormecido em sua guarita, e tampouco era de interesse à guerreira, depois de conferir-lhe a fisionomia. Deixou que permanecesse ali, enlaçado por seus sonhos, e desceu do posto de guarda para o nível do pátio.

Após discernir uma pilha de restos de cozinha, entrou pela porta a seu lado, a qual supôs levar aos serviços do forte. A suposição foi correta: além da porta, havia uma pequena despensa entulhada de sacas e barris. Algumas ratazanas faziam uso da hora tardia para furtar seu sustento, mas logo desapareceram ao perceberem que tinham companhia.

Ashlan passou à sala seguinte: uma cozinha simples de onde pilhou um punhado de taças de prata e talheres, possivelmente o melhor pagamento que poderia receber daquilo tudo, e mais adiante adentrou um refeitório com um par de mesas para seis. Lá, três homens dormiam pesadamente, todos com intensos odores de embriaguez. Aquele à cabeceira da mesa tinha o nariz quebrado e barba encaracolada que o distinguiam. A guerreira realizou a matança com o punhal que trazia à cintura, e saiu, sem que os outros dois homens jamais soubessem quem os havia visitado.

De volta ao pátio, prosseguiu para onde esperava encerrar sua tarefa: o dormitório da tropa. Era o mais longo dos aposentos, com seis camas duplas recostadas em cada uma das paredes, baús aos pés dos leitos e armários intercalados. Contou sete homens deitados, mas um deles estava prestes a se levantar quando se esgueirou porta adentro. Sua reação foi um lampejo instantâneo; puxou o arco e arremessou-o como uma clava violentamente impulsionada. Acertou a cabeça do homem com potência suficiente para talhar sua testa; a sorte a favoreceu e pousou tanto o soldado quanto a arma sobre o colchão de palha. Uma flecha teria evitado o risco, mas matar aquele sujeito em particular não parecia cumprir nenhum objetivo. Achou o terceiro dos torturadores de Lys adormecido, à sua mercê. Outra vez, realizou o feito escarlate pelo qual havia se proposto ir até a fortaleza.

Procurou em vão pelo último dos soldados, tomada por um senso iminente de urgência. A verdade é que não considerara que os homens pudessem estar tão espalhados; em breve a manhã raiaria, e ainda havia muito que fazer. Deixou o dormitório já ponderando sobre cursos mais ousados de ação, quando se deparou com um jovem escanhoado saindo de uma porta adornada como um santuário, a um canto da muralha.

A providência lhe sorriu novamente; reconheceu nele as feições e olhos azulados que procurava. Ao notar as manoplas ensanguentadas da invasora, Daveth reconheceu nela a força impiedosa que vinha buscá-lo. Ashlan esperou que o rapaz fosse alertar o forte e seus olhos rapidamente procuraram por uma posição para resistir aos oponentes; ao invés disso, entretanto, ele sacou a própria arma e a encarou, meio temeroso, meio decidido. Diante da oportunidade, a guerreira avançou pelo pátio em carga, brandiu sua espada durante o percurso, e confiou em sua experiência e velocidade para obter seu quarto troféu. Separou o prêmio com um único corte direcionado ao pescoço do rapaz. Se tivesse sido visto por terceiros, o golpe teria parecido quase um ato de misericórdia.

Para Ashlan, seu propósito estava quase findado. Faltava-lhe um último detalhe, um acerto de contas que garantiria que outras jovens não viessem a sofrer a mesma sina de Lys. Esperava que a torre fosse contígua à muralha, mas a distância que a separava da amurada podia ser saltada. Desta maneira, resolveu prosseguir com o plano. Dirigiu-se até a porta de entrada da torre, partiu a corrente que a mantinha fechada com um torque dos músculos e adentrou em busca daquilo que realmente a interessava.


§


A torre de Amonost era circular em forma, com cerca de dez metros de diâmetro e aberta apenas em lacunas de observação entalhadas nas paredes. Possuía cinco andares, além do topo descoberto, e um nível subterrâneo. Tinha a mobília que seria do gosto de um homem-de-armas austero: armas em suportes; mesas, cadeiras e armários de entalhes rústicos; e flâmulas de diversas heráldicas estendidas pelas paredes. Embora modesto em quantidade, o mobiliário era excepcionalmente bem-preservado; não havia quaisquer sinais de poeira nos móveis ou ferrugem nas armas. O armário de pratarias, infelizmente, estava trancado à fechadura. Ashlan lamentou o desperdício das peças preciosas.

A invasora retirou um dos potes de cerâmica em sua mochila, desatou a tampa e passou a derramar seu conteúdo de odor ácido de maneira distribuída. Tinha acabado de espalhar o quarto recipiente pelo terceiro andar, quando subitamente chegou aos seus ouvidos um rugido avassalador, um estrondo de fúria bestial que reverberou pela rocha das paredes, ignorando sua solidez. Seguiu-se uma gritaria incompreensível, sinos foram tocados e em uma questão de instantes, o forte estava acordado. A esta altura dos acontecimentos, alguém já teria visto os corpos que deixara para trás, mas surpreendeu-se que ninguém tivesse entrado pela torre em seu encalço. Talvez a fonte do rugido gutural impedisse os soldados, o que a fazia de certa maneira uma visitante bem-vinda. Com o tempo que lhe foi dado, Ashlan despejou mais um frasco do líquido volátil pelo quarto andar, e se preparou para defrontar o Comandante após acender um archote.

Encontrou o homem aguardando-a com calma pétrea, finalizando os ajustes de seu traje de escamas. O quarto que ocupava era composto por uma cama simples, um grande baú-cofre a seus pés, um armário, uma escrivaninha, um descanso de armas e um alçapão de teto onde se interrompia o progresso da escadaria. O Comandante fazia jus à reputação de força excepcional que possuía; eram raros os homens que Ashlan avistara de baixo desde que se tornara adulta. Percebeu que fora ingênua ao imaginar que um guerreiro conhecido por seus hábitos cruéis como aquele poderia ser surpreendido: estes tipos de homens, acostumados a víboras, jamais abaixavam sua guarda, pelo constante temor de serem picados.

– Eu suponho que esteja aqui a mando de alguém. – Manteve a frieza rígida, uma fachada que em conjunto com a voz grave, conjurava uma imponência severa – Seu senhor comanda grande lealdade, para fazê-la vir até aqui.

– Nenhum mestre corta seu chicote em minhas costas, como faz com sua malta amestrada. Mas eu venho em nome de alguém, se é o que deseja saber. Meu nome é Ashlan, filha do Cão-Negro, e eu venho em nome da morte. – Após se pronunciar, largou o archote escadaria abaixo. As chamas se levantaram instantaneamente para consumir os níveis inferiores da torre.

Homens menores se intimidariam sob a aparição teatral da selvagem. Grimol, todavia, vira horrores o suficiente para não se deixar abalar por palavras, a despeito de quão acaloradas fossem ou não. Tampouco temia que qualquer torre sólida Andorana fosse desabar sob o efeito das chamas. Preferiu armar-se de uma maça pontiaguda, um escudo de aço e autoridade sobre a invasora.

– Está vestida como uma guerreira e fala como uma guerreira. Mas eu vejo apenas uma criança fantasiada. Qualquer um que já tenha manchado a arma em sangue sabe, a despeito das glórias que vestimos, o que verdadeiramente somos.  – Girou a maça-estrela para firmar sua empunhadura. – E ninguém deveria se orgulhar tanto deste ofício.

– Eu matei antes, e matarei de novo, adestrador. Um lobo não se envergonha de matar uma raposa. E quando mata um urso, maior é o seu orgulho – Dobrou os lábios em um deboche especialmente escarnecedor. Se não podia acuar o homem, podia ao menos testar sua compostura.

– Quanta audácia. Quanta empáfia. – O Comandante resistiu ao teste. Permaneceu inabalado. Ashlan se viu forçada a admitir que aquele não era um homem ordinário. – Esta seria uma ótima oportunidade para ensiná-la sobre humildade, criança. É uma pena que a lição tenha somente um resultado.

– Você sabe quem sou e porque vim. Quatro encontraram sua sina esta noite, que sejam cinco, se os seus cães não forem leais o bastante para enfrentar o fogo por seu mestre. – Concluído o desafio, desnudou a própria espada.

Golpes estrondosos foram trocados quase imediatamente. Grimol despejou sua força taurina sobre a oponente, ora com o peso de sua maça-estrela, ora com impactos de seu escudo. Ashlan revidou com golpes enérgicos, que se igualavam à potência do gigante unicamente pela determinação de sua fúria. Ambos sabiam se proteger bem da violência do inimigo; tinham os pés firmemente apoiados, mantinham as cabeças distantes das armas alheias e usavam a proteção das armaduras para transformar acertos em erros. Naquela dança de morte, a experiência do Comandante ditava os passos, mas o vigor da Drúan determinava o ritmo. Colidiram uma, duas, três, meia dúzia de vezes, travaram armas outra meia dúzia de vezes, esticaram músculos com o esforço para quebrar o impasse e contundiram os corpos com o choque de colisões.

Contra suas chances de vitória, a espada de Ashlan era longa demais para o teto da torre, limitando-a a golpes vindos de baixo e balanços à meia-altura. Sem conseguir desferir ataques superiores, era incapaz de impor sua força de modo a romper a guarda do Comandante. Hábil, Grimol controlava seguramente o espaço entre os dois, impedindo qualquer estocada eficiente. Como um acréscimo cruel, o quarto passou a encher-se rapidamente da fumaça vinda dos andares inferiores, ardendo os olhos e a respiração de ambos os combatentes. Era questão de tempo até que sufocassem. A Drúan podia ser mais jovem, mas o Comandante certamente também possuía pulmões largos.

Ficou claro á Ashlan, à medida que o combate prosseguia, que Grimol possuía todas as vantagens e ela, nenhuma. Ela investia contra o inimigo com toda a intensidade que sua juventude permitia, enquanto o guerreiro veterano media quando ser ofensivo e quando se recompor do cansaço. Com a densa fumaça preenchendo o ar, seu conhecimento da disposição do mobiliário se provou valioso, enquanto ela havia capturado apenas um vislumbre do mesmo. Sua arma podia ser manuseada plenamente, enquanto a dela era metade inútil. E Grimol também percebera isto.

Partiu para uma sequência de golpes que quase derrubaram a Drúan no chão, quando seus calcanhares se depararam com os degraus da escadaria. Afinal, o Comandante tinha uma lição de humildade para demonstrar à sua pretensa assassina, e era de que não havia vergonha nenhuma em sua próxima decisão. Em uma súbita reação, Ashlan disparou escada acima, e pôs toda a força de suas costas contra o alçapão no topo.

O trinco rompeu facilmente junto às tábuas de que fazia parte. A Drúan se lançou pela passagem em uma busca desesperada por fôlego, mas também para evitar que suas pernas fossem esmagadas pela maça de Grimol. Ashlan se apoiou nas pedras frágeis do andar descoberto, recuperando o equilíbrio e lavando os olhos na claridade matutina. Uma espessa coluna negra subiu em seu encalço, dando lugar, desta vez, a uma aparição teatral do Comandante quando sua silhueta agigantada surgiu da escuridão. Com espaço amplo sobre a sua cabeça, porém, a selvagem retomou sua determinação de vencer; Grimol reconheceu a intenção da jovem guerreira em seus olhos injetados.

Quaisquer que fossem os planos de ambos para dar continuidade ao embate, eles se tornaram insignificantes em instantes. O segundo rugido foi outro trovão, mais próximo e mais atordoante. A fumaça no topo da torre havia chamado a atenção da fera solta no pátio. Ashlan ouviu pesadas patas correrem sobre a terra, depois se chocarem contra as paredes da torre, e por fim o som de garras afiadas escalando a rocha. Antes que pudesse imaginar o que estava a caminho, a fera se fez presente diante de seu mestre e da selvagem.


§


A besta era tudo o que os soldados de Amonost temiam, e mais.
               
Seu corpo era o de um imenso leão negro, mas apenas uma crina oleosa percorria o dorso, enquanto o restante da pele era quase que completamente desnuda. A cauda era recoberta de escamas e terminava em um ferrão similar a cabeça de uma serpente, de onde pingava um visco escuro e efervescente que somente podia ser veneno. A musculatura era bulbosa, prestes a rasgar pelo tamanho excessivo. Mas, de todas as suas características, a que era absolutamente a mais aterradora, aquela contra a qual nenhum dos soldados do forte ousava se defrontar, era sua face. Era ela que fazia da besta uma criatura de pesadelos, do qual o inconsciente dos homens fazia todo o possível para acordar. Pois onde deveria haver a face de um monstro, havia o rosto de uma mulher. No lugar da juba, fios negros de cabelo caiam emaranhados. Faltava-lhe o pescoço, ou se possuía era desproporcional ao corpo, e sua expressão estava enterrada ali, no tronco, como uma máscara deturpada que zombava da anatomia regular dos seres.

Por detrás de suas feições perversas, a besta estava frustrada. Tinha sido prometida uma presa especial para aquela noite, uma de carne tenra e sangue doce. Recebera os trapos com o odor da presa, impregnados de medo e antecipação, e seguira avidamente até onde o cheiro era mais forte. Encontrou apenas árvores onde seu festim deveria estar à espera. A fuga da presa  excitou-a a princípio; fazia tempos que não se dedicava a uma caçada genuína. Perseguiu a trilha até onde pessoas se escondiam em velhos casebres, e o cheiro cresceu no interior de uma das choupanas abandonadas. Esgueirou-se pela escuridão e espreitou pelas frestas do esconderijo; o que viu, entretanto, foi somente uma loba magra dormindo encolhida. Poderia entrar para esviscerar o animal adormecido, mas ainda estava sedenta de outro tipo de carne.

Vasculhou minuciosamente por sua presa. Espiou várias casas e investigou as colinas, oculta na escuridão. Foi uma noite em que os habitantes daquela parte de Aeorvis reforçaram suas portas e oraram com mais fervor para Théon. A excitação transformou-se em irritação. A irritação transformou-se em uma frustração colérica. Voltou para o covil pouco antes do nascer do sol. Quando soldados incautos deixaram suas proteções de pedra, rugiu novamente, ainda faminta, e considerou novas presas. Então, notou a fumaça onde seu amo repousava.

Subiu para verifica-la, e deparou-se com uma mulher intrusa, ameaçando a seu amo. Escolheu sua nova presa. Estava decidida a comer. E estava decidida a matar. Tanto o amo quanto a mulher ficaram paralisados ante a sua chegada, os músculos rígidos como estátuas. Como era esperado dos seres menores que a avistavam por completo.


§


O mestre da besta não demorou a voltar a si, habituado mais do qualquer outro à presença da criatura; sentiu-se confiante para avançar contra a guerreira junto com a monstruosidade. Surpreenderam-se, pois nenhum dos dois esperava que a mulher também fosse capaz de reação.

Ashlan era uma Drúan, e embora tivesse experimentado o suficiente da civilização, nenhum tempo vivido nela poderia mudar esta parte do seu ser. Os bárbaros montanheses não se acuavam facilmente diante da ameaça de morte. Diferente dos homens tomados pela noção de segurança provocada por muros, os Drúan não se anestesiavam quando o perigo vinha ter diretamente com eles. Ao invés disto, agiam. Fosse com fúria cega, impulsividade animalesca ou mero instinto de sobrevivência, os selvagens agiam impetuosamente. Era a lei da natureza, lutar para viver, e talvez a única lei que realmente os importava.

A vontade para quebrar o terror imposto pela criatura veio do fundo da mente de Ashlan, não como uma decisão voluntária, mas como uma onda de calor rubro que inundou seus pensamentos. Quando a besta se adiantou para atacar, ela a respondeu com um brado de guerra tão possuído que, por um momento, a coisa metade delírio, metade realidade, confundiu-se sobre a natureza humana da mulher.

Ainda assim, determinada a saciar seus apetites, a fera se ergueu para subjugar a presa sob suas patas, das quais a Drúan desviou-se com velocidade igualmente felina. Da pouca clareza que retinha, Ashlan sabia que o bote mais perigoso era o da cauda, não o das garras, e que a única maneira de perseverar sobre aquele terraço era não se deixar flanquear; de outro modo, tombaria facilmente para golpes de maça de um lado e ferroadas do outro. Conforme se prevenira, o ferrão estalou maliciosamente com o intento de perfurá-la. Ergueu o braço em defesa, reduzindo a estocada a uma perfuração em sua manopla, e com rapidez dos punhos agarrou à cauda.  Urrou outra vez, ergueu toscamente a espada grande demais para ser manuseada em uma só mão, e jogou o peso da lâmina sobre o apêndice escamoso.

O rugido de reposta da besta foi um misto de bramido leonino e agonia feminina. A cauda chicoteou de maneira errática, como a serpente decapitada a que se assemelhava agora. Grimol cobriu o rosto para se proteger do sangue venenoso espirrado e Ashlan imitou o gesto reflexivamente. A besta também se contorceu em sofrimento até que, em aceitação do que havia lhe ocorrido, parou de agitar a cauda.

Investiu então em um frenesi de ataques mortais, garras afiadas conjugadas com mordidas humanas, com o único propósito de devolver a dor que lhe havia sido provocada. Em parte, já havia sido bem-sucedida: a picada que atingira o punho de Ashlan fazia seus nervos queimarem como se perfurados por agulhas em brasa. A guerreira evitou ser atingida o melhor que pôde, esquivando-se das garras e bloqueando as mordidas, mas o esforço desprendido para tal anulava por completo quaisquer possíveis contragolpes. Além disso, o Comandante não demorou a compreender seu jogo de posições, e ele era um jogador melhor do que ela. A invasora recebeu uma pancada de maça no ombro que quase partiu sua clavícula e outra no tronco, rachando uma costela. O sangue das fincadas da maça-estrela escorreu por sua cintura. Seu corpo podia resistir à exaustão somente até certo ponto, o qual já havia sido há muito ultrapassado. Tão-somente a mente se recusava a obedecer às circunstâncias.

Foi em um relance de lucidez que a Drúan deliberou sua saída daquela situação de morte certa. Ashlan deixou que os oponentes enfim a flanqueassem como pretendiam. Confiante da conquista sobre um inimigo excepcionalmente persistente, o Comandante avançou para o ataque derradeiro. A guerreira selvagem levou a mão à bolsa menor que carregava, buscou o último dos seus frascos de verniz e estilhaçou-o sobre o rosto do oponente humano. Grimol recuou atônito e ensandecido pelo líquido cáustico derramado em seus olhos. Ao ver o amo em posição tão vulnerável, a besta intercedeu com um salto desesperado. O lodo sobre o piso e a fragilidade da amurada fizeram o restante. Ashlan agarrou-se ao Comandante antes que a besta se chocasse contra ela, e do topo de Amonost, caíram os três.

Bateram contra a sacada da muralha metros abaixo. A guerreira se agarrou às margens do muro, uma mão abraçada à rocha com a firmeza de que dependia sua vida, a outra envolta em sua espada com um aperto de ferro. Nem Grimol, nem sua besta, tiveram a mesma sorte. A muralha devolveu seus corpos à queda, um trajeto que terminou no encontro com o chão do pátio. O impacto com o solo estalou as costas do Comandante como se algo tivesse se partido indevidamente; seus olhos pasmos e trêmulos atestaram o fato. Quanto a besta, gritou moribunda com as patas quebradas. Nestas condições, os soldados que a tudo observavam finalmente reuniram uma coragem frenética para cobrir de estocadas a fonte de seus pavores. Outros se deslocaram atrás da intrusa em fuga pela muralha. Ashlan escalou o lado de fora tão velozmente quando havia entrado, e já havia terminado a descida quando as flechas começaram a chover sobre ela. Estava quase na base da colina quando uma das setas perfurou suas costas na altura da cintura, tombando-a nas águas do vale em torno do forte.

Para os soldados ali reunidos, este foi o fim da intrusa. Se a ferida não fosse o bastante, vestida em seu tipo de armadura, logo afundaria no riacho e afogaria. O forte tinha outras preocupações no momento. O Comandante estava ferido, a besta morta, a torre em chamas. Uma patrulha poderia procurar pelo corpo da invasora mais tarde.

Ashlan não estava tão convencida de seu desfecho. Sobreviveu. Encontrou uma pequena gruta em meio às colinas que a serviu de esconderijo pelo restante do dia. Tiras de tecido de suas próprias vestes serviram para estancar suas feridas. Uma armadilha simples para lebres a proveu o sustento para recuperar a vitalidade. Descansou somente com uma diminuta fogueira como companhia, para manter o frio afastado do peito sem atrair maiores atenções. Com o passar das horas, voltou a sentir o braço envenenado; mas nunca mais foi o mesmo, e mesmo em seus últimos anos de vida, havia ocasiões em que fios de dor incandesciam por ele. Aquele era um veneno feito de coisas estranhas ao mundo: era composto da matéria das abominações que os insanos e soberbos conjuravam dos reinos ocultos. E aquilo que estas forças tocavam, jamais abandonavam. Ashlan jamais se esqueceu desta lição sobre feitiçaria negra.


§


Quando raiou a aurora seguinte, houve certa comoção e gritaria na praça central de Varllän. A primeira a encontrar a bolsa de couro foi uma lavadeira em busca de água do poço. Estava jogada ao lado da fonte, sem que ninguém tivesse notado quem a depositara. Uma vez esvaziado, o embrulho revelou seu conteúdo macabro: quatro cabeças de conhecidos homens da patrulha de Amonost. Uma pequena multidão reuniu-se para contemplar o ocorrido, até que um trio de soldados estacionados ali decidiu encerrar a exibição mórbida. Detrás dos curiosos amontoados, Lys também presenciou a agitação. Talvez seu tormento nunca se tornasse indolor. Mas, por ora, satisfez-se com este primeiro bálsamo. Quando retornou ao casebre, as peles já não estavam mais lá; em seu lugar, encontrou uma adaga, um punhado de provisões de estrada, e algumas quinquilharias de prata.

Após as chamas baixarem em Amonost, o Ministro ancião solicitou uma averiguação da torre enegrecida de fuligem. Sua posição eclesiástica o tornava responsável pelo forte até que o Lorde enviasse um substituto para o Comandante incapacitado. Confirmaram o que já era evidente; a bárbara havia causado o incêndio em sua trilha de matança. Das poucas coisas que resistiram à destruição, os soldados se impressionaram com o baú incólume do Comandante. Concluíram que algo anormal protegia seu tampo, uma vez que nenhuma barra de ferro conseguiu destravá-lo. O Ministro encontrou a intricada chave, esculpida em obsidiana, pendurada no pescoço do guerreiro paralisado. Quanto à sua besta, foi esquartejada e incinerada tão rápido quanto possível.

Eventualmente, passado o pior dos dias, o sacerdote destrancou o baú sobrevivente ao incêndio. Encontrou os documentos que concediam ao Comandante sua função, cartas trocadas com os oficiais de outras fortalezas, e uma coleção de livros de aspecto envelhecido. Surpreendeu-se, talvez não tanto quanto deveria, com os temas sobre os quais versavam: pactos sombrios e a invocação de entidades há muito esquecidas pelos homens. Além destes pertences, encontrou um largo canudo preenchido por uma pintura de exímia precisão: reconheceu um retrato familiar, sobre o qual figurava um homem imberbe que somente poderia ser um jovem Grimol; à sua esquerda um rapaz de traços deveras similares, trajado como Ministro; à sua frente uma criança magra, em vestes de pajem; e à sua direta, uma belíssima dama, das mais delicadas feições e de longos, voluptuosos cabelos negros. 

segunda-feira, 4 de junho de 2012

I: O Velho Lobo


“No inverno, nascer
Na primavera, matar
No verão, semear
No outono, morrer”

Provérbio Drúan

Na tribo, os anciões diziam que o fogo tinha o poder da memória. Diziam isto porquê era em torno da fogueira que os guerreiros se reuniam para contar suas histórias: bradavam os inimigos vencidos, honravam os amigos perdidos e riam dos infortúnios sofridos. Era um dos poucos momentos que os combatentes se permitiam ser alegres; os cônjuges lhes faziam companhia, as crianças espiavam por sobre seus ombros, a caça percorria quente por suas bocas e a bebida inflamava suas gargantas. Entretanto, não importava o quanto haviam se refestelado em embriaguez, eles sempre respeitavam o fogo. Diante do fogo, os guerreiros eram compelidos pela verdade. Eles sempre narravam a batalha conforme realmente havia ocorrido, o descanso de seus ancestrais como garantia.

Era um fogo distinto que a guerreira em armadura mirava agora: as chamas de uma lareira. Desta vez, não estava por sobre os ombros de matadores vibrantes como quando criança, mas sentada ao canto de uma pequena e quase vazia taverna de estrada. O taberneiro, um senhor enrugado de cabelos amarelados e testa calva pela idade, vigiava com discreta curiosidade a visitante tardia. As mãos se ocupavam em polir as garrafas de suas prateleiras, mas a mente perscrutava à desconhecida com o cuidado arisco dos que viviam nos ermos. Desconfiava, em particular, dos que andavam armados na calada da noite e portavam brasões sem se anunciar – como era o caso.

Sua estatura era de uma mulher poderosa, certamente tão alta quanto os homens do norte, e mais alta que a maioria do sul. A pele era marfim bem polido, facilmente passável por uma escultura, se as cicatrizes aqui e ali não a garantissem o aspecto de vida. Os cabelos caíam pelas costas em fios louros acinzentados, primeiro corridos e depois firmemente trançados, numa indefinição entre selvagem e civilizado. As placas de aço que vestiam o corpo, junto à capa de pêlos de lobo que pendia dos ombros, mesclavam rigidez aristocrática à aparência bravia.

O taverneiro julgou que o semblante jovem permeasse cerca de duas décadas vividas, mas os olhos cor de avelã em nada pareciam juvenis. Ao contrário, se qualquer coisa, revelavam uma alma dada a paixões sombrias. Sob o brilho alaranjado da lareira, refletiam os pensamentos longínquos da visitante.

Àquela guerreira, o fogo não invocava a lembrança prazerosa de inimigos derrotados. Notoriamente, exercia seu poder hipnotizante sempre sobre a mesma memória. Ele sempre invocava sua primeira matança.

  
§


Embora o taverneiro nunca viesse saber, seu nome era Ashlan, filha de Aesar, conforme fora batizada após completar seu primeiro inverno de vida. O pai era conhecido como o Cão-Negro, por sua ferocidade e por seu rosnado inconfundível em batalha. Tinha sido Ahrl da tribo após subjugar em combate seu predecessor, Cléogann Martelo-Justo. Seu próprio nome, Ashlan, significava Leoa-Cinza. Tinha sido assim nomeada porquê, diferente dos outros Drúan – dados a madeixas negros e olhos azulados – nascera com os cabelos pálidos e olhos escuros que foram da avó de sua avó. Além disso, contavam as anciãs que chorava mais alto que qualquer outra criança de colo de sua época. “Rugia como um leão da montanha”, diziam.

Cresceu como as outras crianças da tribo – livre para experimentar o mundo a sua volta. Fortaleceu os braços subindo montanhas e enrijeceu as pernas descendo por vales. Afiou a mente ouvindo as histórias dos ancestrais que os anciões tinham para partilhar. Saltou sobre as pedras dos rios, nadou contra  a força das correntezas e correu ao sabor do vento. Apesar de vestida em armadura e heráldicas, trazia em seu âmago aquilo que fazia dos Drúan quem eram: a firmeza de sua terra natal. Onde outros viam uma terra fria, escura e inóspita, os Drúan do Norte viam uma terra que os exigia seu melhor, sem muralhas sobre o horizonte ou leis que privilegiassem uns acima de outros. A única coisa que ela os concedia era o direito de lutar para sobreviver. E nisto, eles primavam: fossem caçadores, ferreiros ou guerreiros. Amavam a terra severa em que viviam e, em retribuição, ela os tratava como seus filhos favoritos. Filhos feitos de paisagens melancólicas, de uma intensa admiração pela liberdade e uma vontade inabalável de viver.


§


Os soldados em mantas de Mondheim cruzaram o batente da porta em trio: a capitã de cabelos negros e curtos à frente, em armadura de placas e espada à cintura, e dois jovens guardas com lanças em punhos e couras escamadas à sua direita e esquerda. Exceto pela poeira das botas, eram figuras alinhadas, de passada firme, postura rígida e semblantes austeros, como eram os habitantes da cidade dos Lobos Argênteos. Mondheim existia no coração de Faêngarth, a Floresta Uivante: um lugar de pinheiros antigos, ventos gélidos e cantos animalescos. Além de suas muralhas, devia-se viajar rápido e com destino certo, pois bestas maldosas, metade homens, metade feras, espreitavam detrás das árvores ancestrais. Também era prudente encontrar teto antes da lua cheia, quando as bestas se tornavam especialmente sanguinárias.

Nestas condições tenebrosas, era apropriado aos indivíduos serem disciplinados. O fato dos soldados terem vindo tão longe, quase no limiar sul da floresta, comprovava sua obstinação. Ashlan não esperava menos dos filhos de Mondheim; não era sem motivo que o brasão em sua capa era tal qual o bordado na capa da capitã.

O trio caminhou vagarosamente ao observar o ambiente. A sala podia ser percorrida com cerca de vinte passos de leste a oeste, e uma igual medida de norte a sul. O balcão de cedro envernizado ficava logo à direita da entrada. Detrás dele, o velho taverneiro aprumou o avental e acordou aos beliscões uma moça bem-afeiçoada debruçada sobre alguns barris. Pouco após o balcão, degraus subiam até a plataforma do nível superior. Este era sustentado por uma sequência de vigas das quais suportes para lamparinas lançavam luzes trêmulas. Seis mesas dispostas em ângulo reto, três em cada parede, contornavam o lado norte e oeste do estabelecimento; um par de homens rudes bebia soturnamente em uma delas. A grande lareira de pedra, por sua vez, ocupava a parede oeste e era a mesa imediatamente ao seu lado que Ashlan fazia uso. Os ouvidos ficaram alertas com a chegada dos soldados, mas os olhos permaneciam enlaçados pelas brasas crepitantes.    

– Saudações, bom patrão – Hilga, a capitã, limpou a garganta para projetar a voz. – Problemas cruzaram sua porta esta noite. 

– Somente se o trouxeram convosco, minha senhora – O taverneiro tentou soar humilde, mas pareceu constrangedoramente irônico, dada a mescla de cansaço e falsa simplicidade em sua fala.

– A lei existe para o fidalgo e para o plebeu, para o nobre e para o comerciante, patrão. Faz bem em se lembrar disto – a resposta dura da capitã silenciou rapidamente o homem ancião. Sem mais interlocuções, caminharam para a mesa à lareira, certeiros em seu destino. Os dois lanceiros cercaram os flancos. A capitã posicionou-se a frente e repousou a mão sobre a bainha de maneira afirmativa.

– Você sabe a razão de estarmos aqui, bárbara – Anunciou. – Renda suas armas, e a levaremos em salvo-conduto.

– A lâmina de um lobo argênteo é sua vida e honra, capitã. Não seria correto entregar a minha apenas por um passeio, seria? – a guerreira saiu languidamente de seu torpor. O discreto dobrar de seus lábios tinha ares sardônicos. Estava enrolada na capa até então, onde a capitã deduziu que ocultava a grande espada com a qual cometera seus crimes.

– Não vejo nenhum Lobo de Mondheim, nem pessoa honrada. Só uma foragida com contas a prestar à lei, e uma mulher que se deita com quem a queira tomar – a máscara de sobriedade estilhaçou-se em um esgar de desdém. 

A guerreira riu exageradamente dos pudores dos chamados povos civilizados, pelos quais se ofendiam rapidamente. – Diga-me, Hilga. Todo este desprezo é porque supostamente maculei seu adorado emblema? Ou por nunca tê-la convidado ao meu leito? – indagou levianamente. Os Heimnianos, como muitos outros, privavam suas mulheres de amores, prazeres e liberdades por ordem de seu Deus Iluminado. Algumas mulheres em particular, como Hilga, aprendiam a apreciar seus grilhões como sinal de virtude. Ashlan, herdeira dos Drúan, jamais permitiria que Deus algum tirasse qualquer coisa sua, somente pelas circunstâncias do seu nascimento.

– Chega de acintes, foragida. Você sabe cumpriremos nosso dever, conforme for necessário... a despeito de quem a acolheu. – O desdém transformou-se rapidamente em uma raiva efusiva. – E, de fato, o manto não lhe é mais de direito. Entregue-o junto às armas, antes que lhe seja arrancado.

– O que é meu, me pertence, capitã. A capa me foi entregue pelas mãos do Duque que tanto venera. Se a quer de volta, ele mesmo que venha buscá-la – o divertimento desapareceu da voz de Ashlan. – Nós servimos juntas, Hilga, filha de Hargol. Nós fizemos a patrulha juntas, nós bebemos, sangramos e matamos juntas. O laço da irmandade é mais forte que o laço da lei. – seu apelo foi quase uma lamentação, fadada a cair em ouvidos surdos, pois ela já sabia o que estava por vir.

– A ordem lhe foi dada, selvagem, e não será repetida. O tempo das palavras passou. – E assim, com esta dura sentença, a capitã deu início à hora que vida e morte se decidem por vias da batalha. Em um sobressalto guiado pelo instinto, Ashlan brandiu o atiçador da lareira, levantou-se e atravessou o ferro quente pontiagudo pela coxa de um dos lanceiros. Defletiu a estocada do outro rapaz com o braço ainda envolto na capa, usando o tecido para fintar a distância entre a haste e seu corpo. Hilga deu um passo atrás, sacou a espada da cintura e a desceu com ambas as mãos contra a cabeça da oponente. Os reflexos da guerreira novamente reagiram por impulso, deixando somente fios de cabelo no percurso do corte cruel, que resvalou na proteção de ombro de sua blindagem.

Com um ímpeto verdadeiramente digno dos selvagens, Ashlan envolveu a lança a seu lado na manta, segurou-a firme e puxou a haste para si; o soldado tentou retê-la, mas não esperava ter de enfrentar à força desproporcional que se impôs sobre ele, nem o sólido chute que colidiu com seu estômago. Hilga desferiu um golpe de ponta com vigor renovado, mas a Drúan desviou-se novamente, desta vez mudando de posição com um jogo rápido dos pés.

 Vacht Demer, Vacht Astargh! – a capitã exclamou para reavivar a determinação de seus comandados e preparou uma nova investida enérgica contra a cabeça desprotegida de Ashlan. O golpe teria fincado o crânio de um oponente menos preparado, mas a agilidade da guerreira o reduziu a um corte na face. Os subalternos, entretanto, não reagiram como deveriam ao bradar e ainda estavam caídos; o rapaz ferido desmaiara graças ao choque súbito da perna trespassada, e o outro permanecia sobre os joelhos, vomitando suas dores abdominais.

Em um momento de experiente clareza, Hilga percebeu como a mulher a sua frente, armada de lança e selvageria, havia se tornado uma força terrivelmente letal. Ashlan se curvou como um gato se prepara atacar uma presa, e a capitã tentou avaliar se a oponente iria se lançar em busca da própria espada a seus pés, ou iria tentar lhe estocar com a lança já em mão. Ponderou sobre o que fazer por um instante – e um instante foi o suficiente para que a guerreira Drúan avançasse com um bote preciso da lança. A capitã ergueu a mão por reflexo contra o golpe derradeiro, mas ao invés de sentir o pescoço ou os dedos se rasgarem, sentiu uma dor lancinante no ombro que sustentava sua espada. Surpresa por ainda estar viva, ergueu a lâmina mais uma vez, mas foi atingida no rosto uma, duas, e uma terceira vez, pela dura manopla da bárbara. A capitã cuspiu vermelho, cambaleou, e se escorou numa das pilastras da taverna.

Embora mortífero, o ímpeto furioso de Ashlan não era covarde. Ao perceber a capitã de maxilar partido travar uma batalha épica para se preservar de pé, decidiu poupá-la; tinham servido juntos na Guerra dos Seis e na patrulha, afinal. Os dois bêbados rudes, a esta altura dos ocorridos, já haviam desaparecido pela porta do estabelecimento e não tardariam a retornar com a milícia local. Ashlan suspirou, agachou-se, e recolheu a espada e a mochila deixadas ao chão. Se não tivessem um bom caçador, outra noite ao relento despistaria os reforços vindouros. Preferia não ter de matar homens que julgava, no mínimo, dedicados. 

Caminhou até o patrão da taverna, trêmulo e acuado pela violência do combate, e colocou sobre a bancada um par de leões de prata. – Pelo vinho, pela hospitalidade e pelos problemas – tentou soar sinceramente arrependida com o hospedeiro, mas somente pareceu grosseiramente assustadora. Fosse como fosse, o velho homem achou que a prata era melhor que a alternativa e recolheu as moedas. A moça de feições gentis permanecia apavorada a um canto detrás do balcão. O velho murmurou qualquer coisa rouca, parecida a um agradecimento resignado, e esperou a selvagem sair antes de acudir os soldados feridos em seu estabelecimento.


§


Ashlan pisou taverna afora com os músculos ainda retesados. Esfregou o corte dolorido no rosto, como se o gesto apagasse o ocorrido, e inspirou o ar da noite com o gosto da vida. As veias pulsavam com calor, a pele vibrava com faíscas, os olhos brilhavam com os raios de prata do luar. O cheiro da estrada molhada de orvalho inundou seu nariz. A chuva da primeira vigília da noite havia se encerrado há pouco. Outra chuva ainda cairia até o amanhecer.

– Sinto muito, velho lobo.

Amaldiçoou as leis da cidade que faziam pai se voltar contra filha, irmão-de-armas contra irmão-de-armas, e virou do avesso a capa bordada sobre os ombros. Mas ainda estava viva, era livre, e isto bastava. Decidiu continuar indo para o sul, com ânimo novo para caminhar até a lua desaparecer, talvez até o sol nascer novamente, mesmo sob o toque gelado da chuva vindoura. Deixou-se levar pelo prazer embriagado que o vinho da batalha instigava naqueles que bebiam dele. Era amargo, mas os anciões Drúan diziam que era o sabor mais revigorante que um guerreiro poderia ter em sua boca. Sabia o quanto isto era verdade, pois nunca esquecera quando o experimentara pela primeira vez, em sua primeira matança.