As árvores brancas de Broceliant erguiam-se como fantasmas pálidos sobre as margens da velha estrada imperial. Cresciam afastadas umas das outras, como se evitassem a companhia de suas semelhantes, e seus troncos desbotados eram altos e estreitos de maneira esquálida. A pouca luz matinal que atravessava suas copas, barrada pelas nuvens do outono, reforçava sua languidez. Os fortes ventos convocavam-nas a cantar seu peculiar coro de folhas secas, e elas os respondiam unanimemente, anunciando a tempestade vindoura.
A menina, caída
por horas sobre o corpo castigado, chorava copiosamente não muito além do
caminho pavimentado. Os cabelos castanhos estavam empapados por um fio
escarlate que escorrera da testa até enrijecer. Os punhos tinham sido amarrados
a uma árvore firme e o vestido feito em farrapos. As marcas na carne estampavam
sua angústia. Pelas formas pueris, não devia ter mais do que doze ou treze de
invernos. Nesta idade, poderia ser considerada adulta nas montanhas, mas aqui
ainda era uma menina. Pendurado nos galhos da árvore à sua frente, balançando
ao sabor do vento, pendia a forma inanimada de um homem simples do
campo. Se quaisquer outros viajantes haviam notado suas lamentações após a
curva, tinham preferido ignorá-las, talvez temerosos de que as árvores fossem verdadeiramente
mal-assombradas.
A exceção fora a
guerreira vestida em placas de pé ao seu lado, de cabelos pálidos e olhos
selvagens. Prestara-se a lhe cortar as cordas e contar o rastro dos quatro
homens que a haviam castigado. Depois, se propôs a aguardar a recuperação da
jovem, a espada servindo-lhe de apoio pela ocasião. Até então, o choro dominara
a menina pelos longos minutos de sua vigília.
– Levante –
quebrou o silêncio de maneira imperativa. A jovem continuou prostrada, as mãos
enterradas na terra pontilhada pelo próprio sangue. Tremia, soluçava e
respirava freneticamente; o inalar do ar resfriado parecia arder-lhe tanto
quanto as dores do corpo. Quando juntou alguma força, conseguiu levar as mãos
até joelhos esfolados.
– Levante – a
guerreira repetiu inclemente. A menina moveu os lábios partidos para pronunciar
qualquer coisa, mas a voz desapareceu em seco. Houve silêncio novamente, e um
momento em que ficou tão quieta, que pareceu ter desfalecido na posição que
estava. Enfim, suas mãos encontraram os pés do homem pendurado à sua frente.
Agarrou o sustento com um aperto determinado, até erguer o corpo e levantar o
rosto para encarar sua observadora exigente.
– Eu
quero... – fungou uma última vez, antes de engolir por definitivo o
pranto. – eu os quero mortos. Todos eles. Você me atenderá? – Ao reencontrar a
voz, soou tão profundamente odiosa, que Ashlan teve certeza não se tratar mais
de uma menina à sua frente; era senão o próprio espírito da vingança, com sua
fúria sedenta, quem lhe exigia resposta.
– Você terá o que
deseja – a guerreira meneou a cabeça afirmativamente. Notou também que a jovem
já não mais tremia ou ameaçava desfalecer. Era sinal de que o pacto seria
verdadeiro. – Mas haverá um dia, quando eu chamar seu nome, que você virá a
mim.
– Meu nome é Lys.
Eu concordo.
– Então, você tem
minha palavra. Eu sou Ashlan. Vamos, já passamos tempo demais neste
lugar – deixou a juíza de lado, satisfeita com o seu julgamento, e
substituiu-a pela guardiã. Pés descalços se aproximaram dela, em um passo
primeiro cambaleante, depois firme e constante. Quando partiram, deixaram
detrás de si uma forma inanimada envolta em chamas, enviada para o além à
maneira antiga dos Drúan. A jovem Lys lançou um último olhar por sobre o ombro,
e como se a visão incendiasse seu interior, seus olhos queimaram em um
presságio de coisas por vir.
Duas horas de
caminhada as levou para longe da estrada imperial, depois de avistarem fiapos
de fumaça ao fim de um meandro de terra. Chegaram ao vilarejo de Varllän junto
com a chuva outonal. Ninguém estava às ruas para recebê-las; a pesada torrente
havia afugentado seus habitantes. Uma densa sombra se assomava entre os
casebres, uma cobertura escura demais mesmo para o tempo nebuloso, deixando uma
notável impressão de que a madrugada havia se atrasado para partir dali. Das
construções locais, as ruínas de uma antiga capela era a única que se
sobressaia, e ainda que devastada, parecia um excesso em meio às pouco mais de
trinta choupanas semiabandonadas.
Era certo que
algo estava fora do lugar em Varllän; um observador cauteloso perceberia que as
sombras se dobravam em direções inadequadas, ângulos impossíveis para as formas
de onde se projetavam. Um mais cauteloso ainda perceberia que estes ângulos se
inclinavam todos na direção da pequena capela central. Entretanto, tanto Ashlan
quanto sua acompanhante estavam indispostas demais com a caminhada e a chuva
para darem atenção às pequenezas dos olhos. Assim, escolheram uma choupana
desocupada, se abrigaram e decidiram se ocupar em tramar a morte de quatro
homens.
§
Havia dois tipos
de soldados no Forte Amonost: os obedientes e os mortos. Trinta homens
designados para patrulhar as margens de Broceliant, na parte mais erma do Ducado
de Aeorvis, viviam ali. A região, preenchida pelas árvores magras e
esbranquiçadas do Bosque Branco tinha por relevo colinas baixas e pedregosas,
entrecortadas por córregos estreitos, estes visitados apenas pelos pequenos
rebanhos dos pastores locais. Era também preenchida por quatro minúsculas e
distantes vilas: Breannän, Varllän, Moinho e Vila Oeste. O próprio forte havia
sido erguido na parte mais vigilante das colinas, em torno das sobras de uma
antiga torre Andorana; de onde era possível observar seu limite ao extremo
norte, os pinheiros altivos de Faêngarth, e sua fronteira oeste, um longo braço
de água do Rhien. Principalmente, estas paisagens remotas indicavam que os
habitantes dali estavam tão afastados do Castelo Aeorvis, que Grimol era seu
único e verdadeiro governante.
A figura do
Comandante, quase sempre vigilante do alto de sua torre, se destacava um palmo
mais alta que a maioria dos seus homens. A despeito da cabeleira e das
costeletas grisalhas, mantinha uma forma muscular notoriamente avantajada.
Vestia as escamas de sua armadura como uma segunda pele, entalhadas
em um elaborado relevo com a heráldica de seu Senhor, dois ursos voltados um
contra o outro. O símbolo lhe caia bem, pois era um lembrete da razão por que
era tão temido: a besta que mantinha em seu calabouço.
Diziam se tratar
um urso que ele capturara anos atrás na floresta, mas todos sabiam que era uma
criatura das trevas. Na maior parte do tempo, fazia silêncio; outras vezes,
urrava freneticamente, e em ocasiões mais raras, os homens juravam ouvi-la
rosnar seus nomes. Respondia exclusivamente ao Comandante; apenas ele se
aproximava livremente do poço gradeado onde habitava. Os outros que faziam o
mesmo iam contra a própria vontade, quando sentenciados ao calabouço de
Amonost. Destes sujeitos, jamais se ouvia falar novamente.
E havia também
certas noites, em que a lua se ocultava do céu e a escuridão noturna era mais
profunda, em que o Comandante abria as grades para a criatura ser livre. Nenhum
dos homens era bravo o bastante para olhar diretamente para besta enquanto
passava; sua mera presença produzia um medo palpável e primitivo, um terror
indefinido de coisas abissais. Mas eles viam sua sombra, e sabiam que não
era um urso. Era quadrúpede, coberta em tufos de pêlos espessos, porém
grande demais para ser qualquer animal natural. A cauda longa chicoteava como
uma serpente maldosa e a cabeça era encolhida no próprio tronco, como se sem
focinho, ou mesmo pescoço. Saia disparada pela noite com um rugido, e voltava
antes do amanhecer em quietude, deixando somente um rastro vermelho detrás de
si. Os que desafiavam sua autoridade não iam longe sob o julgo de Grimol.
Daveth sabia de
tudo isto, por isso preferia ser dos homens que obedeciam, à segunda categoria.
Juntara-se a tropa há cerca de um ano, e embora soubesse que brutalidades
faziam parte do dever, fora sua mais recente tarefa que abalara seu senso de
lealdade. Tinha sido convocado junto a três membros da tropa para dar cabo de
um pastor que ocultara impostos para si. O homem recebeu o devido castigo aos
que roubavam do Comandante: foi enforcado rapidamente, conforme as leis da
terra. Fora a ordem seguinte que agravara a honra de Daveth. Arrastaram a filha
do pastor consigo e a degradaram covardemente. Quando tentou resistir, a menina
quase teve a cabeça partida por um cabo de espada. Era de idade próxima de sua
irmã, Enola, por isto amargara ainda mais a ordem. Ainda assim, fez o que tinha
de se feito; porém, agora, ponderava rancorosamente se teria de fazê-lo
novamente, se possuiria a disposição para tal, e o tratamento que seria
dispensado a Enola caso não a tivesse.
Entrou pelo forte
ao entardecer com o gosto da bile ainda misturado à saliva. Sua patrulha estava
encerrada pelo dia; passou a malha, a lança e o elmo adiante para o soldado que
iria substituí-lo. Os outros homens foram se embriagar como de costume ao fim
de seu turno; nenhum parecia particularmente feliz, à exceção talvez de
Giscard, que era conhecido por seu temperamento cruel. Desta vez, Daveth
preferiu visitar o Ministro da torre.
Cruzou o pátio
até a ala nordeste do forte, onde o diminuto templo da Eterna Luz aguardava.
Era claramente uma extravagância chamá-lo de templo: tratava-se apenas de uma
sala em um canto de Amonost, um pequeno depósito adaptado, suficiente para os
serviços religiosos ocasionais dos devotos e, mais frequentemente, dos finados.
Resumia-se a castiçais acesos nas paredes, meia dúzia de bancos, um altar de
madeira, a cadeira cerimonial do Ministro e uma diminuta prateleira de livros
sacros. O clérigo era um homem ainda mais velho que o próprio Comandante, quase
senil dada a idade avançada, que preferia a companhia de seus livros à dos
homens de armas. Vivia isolado ali; a recompensa dos muitos anos de esforço
para ser esquecido pelos indivíduos à sua volta.
Quando Daveth
adentrou a sala, encontrou o Ministro entretido com seus livros, como esperado.
Sentou-se em um dos bancos e aguardou, até que o velho concluiu sua leitura de
olhos apertados, levantou-se com dificuldade e aproximou-se lentamente. – A luz
é imaculada, infinita e eterna – abençoou o visitante. – A luz é
eterna – respondeu o soldado com a devida reverência.
Os dedos frágeis
do Ministro repousaram sobre seu ombro. Daveth abriu os lábios, balbuciou com
intenção de falar, mas sentiu o amargor na garganta com mais intensidade do que
antes. Sua ira se dilui em um remorso opressor. O Ministro concordou com o
olhar, sinalizou-o as bênçãos da Luz e caminhou de volta para sua cadeira;
outros antes de Daveth já haviam entrado ali com a mesma expressão desolada. O
Ministro sabia que não havia nada que pudesse ser dito; o melhor a se fazer era
deixar os homens terem o momento de paz que esperavam encontrar ali. O soldado
orou silenciosamente pela remissão de seus pecados: mas sabia que não era
merecedor, sabia que era véspera de lua nova, e sabia que deixara uma jovem
camponesa para passar o dia amarrada a uma árvore. Decidiu que passaria a noite
ali em vigília pela alma dela. Mas concluiu que se algum poder maior lhe desse
atenção, seria somente na forma de retribuição.
§
A lua nova
favorecia àqueles que caçavam à noite. Para o lobo e a raposa, a coruja e
o morcego, a escuridão profunda era um amiga bem-vinda; servia-lhes para
moverem-se invisíveis, formas vagas e imperceptíveis na treva, aptas a
encontrar suas presas com mais do que a mera visão. Usavam instinto, prontidão
e paciência, virtudes que separavam o caçador bem-sucedido do mal-fadado na
natureza. Trocadas por comodidades indolentes pelos homens das cidades, nas
montanhas os Drúan integravam estas virtudes inseparavelmente a seu modo de
vida. Aprendiam a pisar silenciosos como o puma, a ouvir com a acuidade do
lince e a esperar com a quietude da serpente.
Assim, naquela
noite, Ashlan, nascida nas montanhas, foi o puma, a lince e a serpente.
Percorreu veloz a distância entre Varllän e Amonost, ora guiada pela tênue luz
das estrelas, ora pelo vento que soprava entre as colinas. Deixou sua capa de
lobo para a jovem Lys se encobrir do frio; em seu lugar, trouxe um arco e
aljava emprestados de um aldeão, uma mochila com meia dúzia de frascos de
verniz comprados do marceneiro local e uma sacola de couro sobressalente. Pelas
distâncias indicadas, calculou que chegaria a Amonost pela hora ao amanhecer.
Enfim, achou um rochedo largo o bastante para cobrir sua silhueta e alto o
bastante para que pudesse observar a muralha de três pontas em torno da torre;
lá, aguardou o instante certo para cruzar pelos vigias esgotados.
Não demorou muito
para que o céu se dividisse entre escuridão e alvorada, quando o vento noturno
deu lugar a uma neblina espessa. Neste momento, a selvagem se moveu novamente.
Deslocou-se no limite que a maciez da relva encobria suas passadas, pôs-se em
um ponto cego da muralha, e escalou com a agilidade de quem se habituara às
encostas escarpadas do norte. Saltou sobre a amurada em posição felina, da qual
avistou a primeira das sentinelas.
Aproximou-se do
homem com passos rápidos, pôs-se detrás dele e acertou-lhe o pescoço com um
punho cerrado que o desfaleceu de imediato. Conferiu suas feições: não era
nenhum dos agressores que procurava. Havia repassado os traços dos soldados com
Lys até impregnar sua memória com quatro retratos distintos e perfeitos; este
era só um rapaz imberbe de cabelos desgrenhados. Ashlan amarrou-o com o próprio
cinto, amordaçou-o e colocou-o em posição que, visto de longe, pareceria ainda
estar fazendo guarda.
Aproveitou as
circunstâncias para analisar do alto o interior da fortaleza. Cada muralha
podia ser percorrida em cem passos e seu pátio era particularmente vazio. Além
da torre principal de topo ruído e encoberto em lodo, havia um estábulo ocupado
por meia dúzia de cavalos, uma pequena forja, e um grande poço gradeado entre o
vão da torre principal e o muro logo detrás dela. Tochas fracas iluminavam a
área em intervalos grandes demais para realmente banirem a escuridão. Pelas
marcas do terreno, Ashlan deduziu por quais portas os homens se deslocavam com maior
frequência, imaginando a partir delas a localização do dormitório, depósito,
arsenal e área de refeições. Estranhou que o portão principal estivesse
escancarado, mas a desolação geral denotava que seus habitantes não se
preocupavam excessivamente com invasores. Se fosse como esperava, pelo menos
metade da guarda estaria fora em patrulha rotineiramente.
Dado o vazio
imperante, a Drúan avançou à guarita seguinte. Avistou o vigia perdido em algum
devaneio direcionado ao horizonte; observou também que este tinha a mecha
grisalha peculiar que lhe fora descrita. Em um instante, arco e flecha zuniram,
e a mecha desapareceu embotada pelo sangue vazado de sua cabeça. Assim se foi
Giscard, amaldiçoado pelo dia em que assumiu sentinela após a patrulha, seu
temperamento cruel apaziguado por seus miolos espalhados.
O terceiro vigia
estava adormecido em sua guarita, e tampouco era de interesse à guerreira,
depois de conferir-lhe a fisionomia. Deixou que permanecesse ali, enlaçado por
seus sonhos, e desceu do posto de guarda para o nível do pátio.
Após discernir
uma pilha de restos de cozinha, entrou pela porta a seu lado, a qual supôs
levar aos serviços do forte. A suposição foi correta: além da porta, havia uma
pequena despensa entulhada de sacas e barris. Algumas ratazanas faziam uso da
hora tardia para furtar seu sustento, mas logo desapareceram ao perceberem que
tinham companhia.
Ashlan passou à
sala seguinte: uma cozinha simples de onde pilhou um punhado de taças de prata
e talheres, possivelmente o melhor pagamento que poderia receber daquilo tudo,
e mais adiante adentrou um refeitório com um par de mesas para seis. Lá, três
homens dormiam pesadamente, todos com intensos odores de embriaguez. Aquele à
cabeceira da mesa tinha o nariz quebrado e barba encaracolada que o
distinguiam. A guerreira realizou a matança com o punhal que trazia à cintura,
e saiu, sem que os outros dois homens jamais soubessem quem os havia visitado.
De volta ao
pátio, prosseguiu para onde esperava encerrar sua tarefa: o dormitório da
tropa. Era o mais longo dos aposentos, com seis camas duplas recostadas em cada
uma das paredes, baús aos pés dos leitos e armários intercalados. Contou sete
homens deitados, mas um deles estava prestes a se levantar quando se esgueirou
porta adentro. Sua reação foi um lampejo instantâneo; puxou o arco e
arremessou-o como uma clava violentamente impulsionada. Acertou a cabeça do
homem com potência suficiente para talhar sua testa; a sorte a favoreceu e
pousou tanto o soldado quanto a arma sobre o colchão de palha. Uma flecha teria
evitado o risco, mas matar aquele sujeito em particular não parecia cumprir
nenhum objetivo. Achou o terceiro dos torturadores de Lys adormecido, à sua mercê.
Outra vez, realizou o feito escarlate pelo qual havia se proposto ir até a
fortaleza.
Procurou em vão
pelo último dos soldados, tomada por um senso iminente de urgência. A verdade é
que não considerara que os homens pudessem estar tão espalhados; em breve a
manhã raiaria, e ainda havia muito que fazer. Deixou o dormitório já ponderando
sobre cursos mais ousados de ação, quando se deparou com um jovem escanhoado
saindo de uma porta adornada como um santuário, a um canto da muralha.
A providência lhe
sorriu novamente; reconheceu nele as feições e olhos azulados que procurava. Ao
notar as manoplas ensanguentadas da invasora, Daveth reconheceu nela a força
impiedosa que vinha buscá-lo. Ashlan esperou que o rapaz fosse alertar o forte
e seus olhos rapidamente procuraram por uma posição para resistir aos
oponentes; ao invés disso, entretanto, ele sacou a própria arma e a encarou,
meio temeroso, meio decidido. Diante da oportunidade, a guerreira avançou
pelo pátio em carga, brandiu sua espada durante o percurso, e confiou em sua
experiência e velocidade para obter seu quarto troféu. Separou o prêmio com um
único corte direcionado ao pescoço do rapaz. Se tivesse sido visto por
terceiros, o golpe teria parecido quase um ato de misericórdia.
Para Ashlan, seu
propósito estava quase findado. Faltava-lhe um último detalhe, um acerto de
contas que garantiria que outras jovens não viessem a sofrer a mesma sina de
Lys. Esperava que a torre fosse contígua à muralha, mas a distância que a
separava da amurada podia ser saltada. Desta maneira, resolveu prosseguir com o
plano. Dirigiu-se até a porta de entrada da torre, partiu a corrente que a
mantinha fechada com um torque dos músculos e adentrou em busca daquilo que
realmente a interessava.
§
A torre de
Amonost era circular em forma, com cerca de dez metros de diâmetro e aberta apenas
em lacunas de observação entalhadas nas paredes. Possuía cinco andares, além do
topo descoberto, e um nível subterrâneo. Tinha a mobília que seria do gosto de
um homem-de-armas austero: armas em suportes; mesas, cadeiras e armários de
entalhes rústicos; e flâmulas de diversas heráldicas estendidas pelas paredes.
Embora modesto em quantidade, o mobiliário era excepcionalmente bem-preservado;
não havia quaisquer sinais de poeira nos móveis ou ferrugem nas armas. O
armário de pratarias, infelizmente, estava trancado à fechadura. Ashlan
lamentou o desperdício das peças preciosas.
A invasora
retirou um dos potes de cerâmica em sua mochila, desatou a tampa e passou a
derramar seu conteúdo de odor ácido de maneira distribuída. Tinha acabado de
espalhar o quarto recipiente pelo terceiro andar, quando subitamente chegou aos
seus ouvidos um rugido avassalador, um estrondo de fúria bestial que reverberou
pela rocha das paredes, ignorando sua solidez. Seguiu-se uma gritaria
incompreensível, sinos foram tocados e em uma questão de instantes, o forte
estava acordado. A esta altura dos acontecimentos, alguém já teria visto os
corpos que deixara para trás, mas surpreendeu-se que ninguém tivesse entrado
pela torre em seu encalço. Talvez a fonte do rugido gutural impedisse os
soldados, o que a fazia de certa maneira uma visitante bem-vinda. Com o tempo
que lhe foi dado, Ashlan despejou mais um frasco do líquido volátil pelo quarto
andar, e se preparou para defrontar o Comandante após acender um archote.
Encontrou o homem
aguardando-a com calma pétrea, finalizando os ajustes de seu traje de escamas.
O quarto que ocupava era composto por uma cama simples, um grande baú-cofre a
seus pés, um armário, uma escrivaninha, um descanso de armas e um alçapão de
teto onde se interrompia o progresso da escadaria. O Comandante fazia jus à
reputação de força excepcional que possuía; eram raros os homens que Ashlan
avistara de baixo desde que se tornara adulta. Percebeu que fora ingênua ao
imaginar que um guerreiro conhecido por seus hábitos cruéis como aquele poderia
ser surpreendido: estes tipos de homens, acostumados a víboras, jamais
abaixavam sua guarda, pelo constante temor de serem picados.
– Eu suponho
que esteja aqui a mando de alguém. – Manteve a frieza rígida, uma fachada que
em conjunto com a voz grave, conjurava uma imponência severa – Seu senhor comanda
grande lealdade, para fazê-la vir até aqui.
– Nenhum
mestre corta seu chicote em minhas costas, como faz com sua malta amestrada. Mas
eu venho em nome de alguém, se é o que deseja saber. Meu nome é Ashlan, filha
do Cão-Negro, e eu venho em nome da morte. – Após se pronunciar, largou o
archote escadaria abaixo. As chamas se levantaram instantaneamente para
consumir os níveis inferiores da torre.
Homens menores se
intimidariam sob a aparição teatral da selvagem. Grimol, todavia, vira horrores
o suficiente para não se deixar abalar por palavras, a despeito de quão acaloradas
fossem ou não. Tampouco temia que qualquer torre sólida Andorana fosse desabar
sob o efeito das chamas. Preferiu armar-se de uma maça pontiaguda, um escudo de
aço e autoridade sobre a invasora.
– Está vestida
como uma guerreira e fala como uma guerreira. Mas eu vejo apenas uma criança
fantasiada. Qualquer um que já tenha manchado a arma em sangue sabe, a despeito
das glórias que vestimos, o que verdadeiramente somos. – Girou a maça-estrela para firmar sua
empunhadura. – E ninguém deveria se orgulhar tanto deste ofício.
– Eu matei antes,
e matarei de novo, adestrador. Um lobo não se envergonha de matar uma raposa. E
quando mata um urso, maior é o seu orgulho – Dobrou os lábios em um deboche
especialmente escarnecedor. Se não podia acuar o homem, podia ao menos testar sua
compostura.
– Quanta
audácia. Quanta empáfia. – O Comandante resistiu ao teste. Permaneceu
inabalado. Ashlan se viu forçada a admitir que aquele não era um homem
ordinário. – Esta seria uma ótima oportunidade para ensiná-la sobre humildade,
criança. É uma pena que a lição tenha somente um resultado.
– Você sabe quem
sou e porque vim. Quatro encontraram sua sina esta noite, que sejam cinco, se
os seus cães não forem leais o bastante para enfrentar o fogo por seu mestre. –
Concluído o desafio, desnudou a própria espada.
Golpes
estrondosos foram trocados quase imediatamente. Grimol despejou sua força
taurina sobre a oponente, ora com o peso de sua maça-estrela, ora com impactos
de seu escudo. Ashlan revidou com golpes enérgicos, que se igualavam à potência
do gigante unicamente pela determinação de sua fúria. Ambos sabiam se proteger
bem da violência do inimigo; tinham os pés firmemente apoiados, mantinham as
cabeças distantes das armas alheias e usavam a proteção das armaduras para
transformar acertos em erros. Naquela dança de morte, a experiência do
Comandante ditava os passos, mas o vigor da Drúan determinava o ritmo.
Colidiram uma, duas, três, meia dúzia de vezes, travaram armas outra meia dúzia
de vezes, esticaram músculos com o esforço para quebrar o impasse e contundiram
os corpos com o choque de colisões.
Contra suas
chances de vitória, a espada de Ashlan era longa demais para o teto da torre,
limitando-a a golpes vindos de baixo e balanços à meia-altura. Sem conseguir
desferir ataques superiores, era incapaz de impor sua força de modo a romper a
guarda do Comandante. Hábil, Grimol controlava seguramente o espaço entre os
dois, impedindo qualquer estocada eficiente. Como um acréscimo cruel, o quarto
passou a encher-se rapidamente da fumaça vinda dos andares inferiores, ardendo
os olhos e a respiração de ambos os combatentes. Era questão de tempo até que
sufocassem. A Drúan podia ser mais jovem, mas o Comandante certamente também
possuía pulmões largos.
Ficou claro á
Ashlan, à medida que o combate prosseguia, que Grimol possuía todas as
vantagens e ela, nenhuma. Ela investia contra o inimigo com toda a intensidade
que sua juventude permitia, enquanto o guerreiro veterano media quando ser
ofensivo e quando se recompor do cansaço. Com a densa fumaça preenchendo o ar,
seu conhecimento da disposição do mobiliário se provou valioso, enquanto ela
havia capturado apenas um vislumbre do mesmo. Sua arma podia ser manuseada
plenamente, enquanto a dela era metade inútil. E Grimol também percebera isto.
Partiu para uma
sequência de golpes que quase derrubaram a Drúan no chão, quando seus
calcanhares se depararam com os degraus da escadaria. Afinal, o Comandante
tinha uma lição de humildade para demonstrar à sua pretensa assassina, e era de
que não havia vergonha nenhuma em sua próxima decisão. Em uma súbita reação,
Ashlan disparou escada acima, e pôs toda a força de suas costas contra o
alçapão no topo.
O trinco rompeu
facilmente junto às tábuas de que fazia parte. A Drúan se lançou pela passagem
em uma busca desesperada por fôlego, mas também para evitar que suas pernas
fossem esmagadas pela maça de Grimol. Ashlan se apoiou nas pedras frágeis do
andar descoberto, recuperando o equilíbrio e lavando os olhos na claridade
matutina. Uma espessa coluna negra subiu em seu encalço, dando lugar, desta
vez, a uma aparição teatral do Comandante quando sua silhueta agigantada surgiu
da escuridão. Com espaço amplo sobre a sua cabeça, porém, a selvagem retomou
sua determinação de vencer; Grimol reconheceu a intenção da jovem guerreira em
seus olhos injetados.
Quaisquer que
fossem os planos de ambos para dar continuidade ao embate, eles se tornaram
insignificantes em instantes. O segundo rugido foi outro trovão, mais próximo e
mais atordoante. A fumaça no topo da torre havia chamado a atenção da fera
solta no pátio. Ashlan ouviu pesadas patas correrem sobre a terra, depois se
chocarem contra as paredes da torre, e por fim o som de garras afiadas
escalando a rocha. Antes que pudesse imaginar o que estava a caminho, a fera se
fez presente diante de seu mestre e da selvagem.
§
A besta era tudo
o que os soldados de Amonost temiam, e mais.
Seu corpo era o
de um imenso leão negro, mas apenas uma crina oleosa percorria o dorso,
enquanto o restante da pele era quase que completamente desnuda. A cauda era
recoberta de escamas e terminava em um ferrão similar a cabeça de uma serpente,
de onde pingava um visco escuro e efervescente que somente podia ser veneno. A
musculatura era bulbosa, prestes a rasgar pelo tamanho excessivo. Mas, de todas
as suas características, a que era absolutamente a mais aterradora, aquela
contra a qual nenhum dos soldados do forte ousava se defrontar, era sua face.
Era ela que fazia da besta uma criatura de pesadelos, do qual o inconsciente
dos homens fazia todo o possível para acordar. Pois onde deveria haver a face
de um monstro, havia o rosto de uma mulher. No lugar da juba, fios negros de
cabelo caiam emaranhados. Faltava-lhe o pescoço, ou se possuía era
desproporcional ao corpo, e sua expressão estava enterrada ali, no tronco, como
uma máscara deturpada que zombava da anatomia regular dos seres.
Por detrás de
suas feições perversas, a besta estava frustrada. Tinha sido prometida uma
presa especial para aquela noite, uma de carne tenra e sangue doce. Recebera os
trapos com o odor da presa, impregnados de medo e antecipação, e seguira
avidamente até onde o cheiro era mais forte. Encontrou apenas árvores onde seu
festim deveria estar à espera. A fuga da presa excitou-a a
princípio; fazia tempos que não se dedicava a uma caçada genuína. Perseguiu a
trilha até onde pessoas se escondiam em velhos casebres, e o cheiro cresceu no
interior de uma das choupanas abandonadas. Esgueirou-se pela escuridão e
espreitou pelas frestas do esconderijo; o que viu, entretanto, foi somente uma
loba magra dormindo encolhida. Poderia entrar para esviscerar o animal
adormecido, mas ainda estava sedenta de outro tipo de carne.
Vasculhou
minuciosamente por sua presa. Espiou várias casas e investigou as colinas,
oculta na escuridão. Foi uma noite em que os habitantes daquela parte de
Aeorvis reforçaram suas portas e oraram com mais fervor para Théon. A excitação
transformou-se em irritação. A irritação transformou-se em uma frustração
colérica. Voltou para o covil pouco antes do nascer do sol. Quando soldados
incautos deixaram suas proteções de pedra, rugiu novamente, ainda faminta, e
considerou novas presas. Então, notou a fumaça onde seu amo repousava.
Subiu para
verifica-la, e deparou-se com uma mulher intrusa, ameaçando a seu amo. Escolheu
sua nova presa. Estava decidida a comer. E estava decidida a matar. Tanto o amo
quanto a mulher ficaram paralisados ante a sua chegada, os músculos rígidos
como estátuas. Como era esperado dos seres menores que a avistavam por
completo.
§
O mestre da besta
não demorou a voltar a si, habituado mais do qualquer outro à presença da
criatura; sentiu-se confiante para avançar contra a guerreira junto com a
monstruosidade. Surpreenderam-se, pois nenhum dos dois esperava que a mulher
também fosse capaz de reação.
Ashlan era uma
Drúan, e embora tivesse experimentado o suficiente da civilização, nenhum tempo
vivido nela poderia mudar esta parte do seu ser. Os bárbaros montanheses não se
acuavam facilmente diante da ameaça de morte. Diferente dos homens tomados pela
noção de segurança provocada por muros, os Drúan não se anestesiavam quando o
perigo vinha ter diretamente com eles. Ao invés disto, agiam. Fosse com fúria
cega, impulsividade animalesca ou mero instinto de sobrevivência, os selvagens
agiam impetuosamente. Era a lei da natureza, lutar para viver, e talvez a única
lei que realmente os importava.
A vontade para
quebrar o terror imposto pela criatura veio do fundo da mente de Ashlan, não
como uma decisão voluntária, mas como uma onda de calor rubro que inundou seus
pensamentos. Quando a besta se adiantou para atacar, ela a respondeu com um
brado de guerra tão possuído que, por um momento, a coisa metade delírio,
metade realidade, confundiu-se sobre a natureza humana da mulher.
Ainda assim,
determinada a saciar seus apetites, a fera se ergueu para subjugar a presa sob
suas patas, das quais a Drúan desviou-se com velocidade igualmente felina. Da
pouca clareza que retinha, Ashlan sabia que o bote mais perigoso era o da
cauda, não o das garras, e que a única maneira de perseverar sobre aquele
terraço era não se deixar flanquear; de outro modo, tombaria facilmente para
golpes de maça de um lado e ferroadas do outro. Conforme se prevenira, o ferrão
estalou maliciosamente com o intento de perfurá-la. Ergueu o braço em defesa,
reduzindo a estocada a uma perfuração em sua manopla, e com rapidez dos punhos
agarrou à cauda. Urrou outra vez, ergueu toscamente a espada grande
demais para ser manuseada em uma só mão, e jogou o peso da lâmina sobre o
apêndice escamoso.
O rugido de
reposta da besta foi um misto de bramido leonino e agonia feminina. A cauda
chicoteou de maneira errática, como a serpente decapitada a que se assemelhava
agora. Grimol cobriu o rosto para se proteger do sangue venenoso espirrado e
Ashlan imitou o gesto reflexivamente. A besta também se contorceu em sofrimento
até que, em aceitação do que havia lhe ocorrido, parou de agitar a cauda.
Investiu então em
um frenesi de ataques mortais, garras afiadas conjugadas com mordidas humanas,
com o único propósito de devolver a dor que lhe havia sido provocada. Em parte,
já havia sido bem-sucedida: a picada que atingira o punho de Ashlan fazia seus
nervos queimarem como se perfurados por agulhas em brasa. A guerreira evitou
ser atingida o melhor que pôde, esquivando-se das garras e bloqueando as
mordidas, mas o esforço desprendido para tal anulava por completo quaisquer
possíveis contragolpes. Além disso, o Comandante não demorou a compreender seu
jogo de posições, e ele era um jogador melhor do que ela. A invasora recebeu
uma pancada de maça no ombro que quase partiu sua clavícula e outra no tronco,
rachando uma costela. O sangue das fincadas da maça-estrela escorreu por sua
cintura. Seu corpo podia resistir à exaustão somente até certo ponto, o qual já
havia sido há muito ultrapassado. Tão-somente a mente se recusava a obedecer às
circunstâncias.
Foi em um relance
de lucidez que a Drúan deliberou sua saída daquela situação de morte certa.
Ashlan deixou que os oponentes enfim a flanqueassem como pretendiam. Confiante
da conquista sobre um inimigo excepcionalmente persistente, o Comandante
avançou para o ataque derradeiro. A guerreira selvagem levou a mão à bolsa menor
que carregava, buscou o último dos seus frascos de verniz e estilhaçou-o sobre
o rosto do oponente humano. Grimol recuou atônito e ensandecido pelo líquido
cáustico derramado em seus olhos. Ao ver o amo em posição tão vulnerável, a
besta intercedeu com um salto desesperado. O lodo sobre o piso e a fragilidade
da amurada fizeram o restante. Ashlan agarrou-se ao Comandante antes que a
besta se chocasse contra ela, e do topo de Amonost, caíram os três.
Bateram contra a
sacada da muralha metros abaixo. A guerreira se agarrou às margens do muro, uma
mão abraçada à rocha com a firmeza de que dependia sua vida, a outra envolta em
sua espada com um aperto de ferro. Nem Grimol, nem sua besta, tiveram a mesma
sorte. A muralha devolveu seus corpos à queda, um trajeto que terminou no
encontro com o chão do pátio. O impacto com o solo estalou as costas do
Comandante como se algo tivesse se partido indevidamente; seus olhos pasmos e
trêmulos atestaram o fato. Quanto a besta, gritou moribunda com as patas
quebradas. Nestas condições, os soldados que a tudo observavam finalmente
reuniram uma coragem frenética para cobrir de estocadas a fonte de seus
pavores. Outros se deslocaram atrás da intrusa em fuga pela muralha. Ashlan
escalou o lado de fora tão velozmente quando havia entrado, e já havia
terminado a descida quando as flechas começaram a chover sobre ela. Estava
quase na base da colina quando uma das setas perfurou suas costas na altura da
cintura, tombando-a nas águas do vale em torno do forte.
Para os soldados
ali reunidos, este foi o fim da intrusa. Se a ferida não fosse o bastante,
vestida em seu tipo de armadura, logo afundaria no riacho e afogaria. O forte
tinha outras preocupações no momento. O Comandante estava ferido, a besta
morta, a torre em chamas. Uma patrulha poderia procurar pelo corpo da invasora
mais tarde.
Ashlan não estava
tão convencida de seu desfecho. Sobreviveu. Encontrou uma pequena gruta em meio
às colinas que a serviu de esconderijo pelo restante do dia. Tiras de tecido de
suas próprias vestes serviram para estancar suas feridas. Uma armadilha simples
para lebres a proveu o sustento para recuperar a vitalidade. Descansou somente
com uma diminuta fogueira como companhia, para manter o frio afastado do peito
sem atrair maiores atenções. Com o passar das horas, voltou a sentir o braço
envenenado; mas nunca mais foi o mesmo, e mesmo em seus últimos anos de vida,
havia ocasiões em que fios de dor incandesciam por ele. Aquele era um veneno
feito de coisas estranhas ao mundo: era composto da matéria das abominações que
os insanos e soberbos conjuravam dos reinos ocultos. E aquilo que estas forças
tocavam, jamais abandonavam. Ashlan jamais se esqueceu desta lição sobre
feitiçaria negra.
§
Quando raiou a
aurora seguinte, houve certa comoção e gritaria na praça central de Varllän. A
primeira a encontrar a bolsa de couro foi uma lavadeira em busca de água do
poço. Estava jogada ao lado da fonte, sem que ninguém tivesse notado quem a
depositara. Uma vez esvaziado, o embrulho revelou seu conteúdo macabro: quatro
cabeças de conhecidos homens da patrulha de Amonost. Uma pequena multidão
reuniu-se para contemplar o ocorrido, até que um trio de soldados estacionados
ali decidiu encerrar a exibição mórbida. Detrás dos curiosos amontoados, Lys
também presenciou a agitação. Talvez seu tormento nunca se tornasse indolor.
Mas, por ora, satisfez-se com este primeiro bálsamo. Quando retornou ao
casebre, as peles já não estavam mais lá; em seu lugar, encontrou uma adaga, um
punhado de provisões de estrada, e algumas quinquilharias de prata.
Após as chamas
baixarem em Amonost, o Ministro ancião solicitou uma averiguação da torre
enegrecida de fuligem. Sua posição eclesiástica o tornava responsável pelo
forte até que o Lorde enviasse um substituto para o Comandante incapacitado.
Confirmaram o que já era evidente; a bárbara havia causado o incêndio em sua
trilha de matança. Das poucas coisas que resistiram à destruição, os soldados
se impressionaram com o baú incólume do Comandante. Concluíram que algo anormal
protegia seu tampo, uma vez que nenhuma barra de ferro conseguiu destravá-lo. O
Ministro encontrou a intricada chave, esculpida em obsidiana, pendurada no
pescoço do guerreiro paralisado. Quanto à sua besta, foi esquartejada e incinerada
tão rápido quanto possível.
Eventualmente,
passado o pior dos dias, o sacerdote destrancou o baú sobrevivente ao incêndio.
Encontrou os documentos que concediam ao Comandante sua função, cartas trocadas
com os oficiais de outras fortalezas, e uma coleção de livros de aspecto
envelhecido. Surpreendeu-se, talvez não tanto quanto deveria, com os temas
sobre os quais versavam: pactos sombrios e a invocação de entidades há muito
esquecidas pelos homens. Além destes pertences, encontrou um largo canudo preenchido
por uma pintura de exímia precisão: reconheceu um retrato familiar, sobre o
qual figurava um homem imberbe que somente poderia ser um jovem
Grimol; à sua esquerda um rapaz de traços deveras similares, trajado como
Ministro; à sua frente uma criança magra, em vestes de pajem; e à sua direta,
uma belíssima dama, das mais delicadas feições e de longos, voluptuosos cabelos
negros.